Três atos de um dia normal
- grupomaespretas
- 29 de set. de 2023
- 2 min de leitura

Era pré black friday. Uma sexta-feira de chuvas torrenciais em Porto Alegre. Caos instaurado.
No trabalho, de frente pra mim, uma menina branka: 20 e poucos anos, moradora de uma nobre região da ZS, filha de militar aposentado e mãe dona de casa. Ela falava sem parar dos itens que estava comprando para seu futuro apartamento, aproveitando as promoções imperdíveis: geladeira, fogão, roupa de cama, e uma lista interminável de supérfluos itens essenciais na Shopee. Eu ouvia, sorria sem vontade e opinava conforme era requisitada por ela.
Da janela da minha mesa de trabalho, eu via a rua lateral sendo tomada pela água: carros quase submersos, pessoas andando com água acima das canelas. Impactada com a cena, fiz um pequeno vídeo e enviei no grupo de whatsapp que eu fazia parte, composto em sua maioria por pessoas branks and antirracistas. O comentário sobre o vídeo foi algo como “os carros são os barcos e as pessoas são os banhistas”, seguido de hahaha’s e kkkk’s dos outros integrantes do grupo. Engoli em seco, e me calei.
Ao final daquele dia, ainda chovia. No ponto de ônibus, muita água empoçada e sem alternativa, os ônibus paravam totalmente dentro d’água para os passageiros subirem, com a água os invadindo pelas escadas. Enquanto eu esperava notei algumas pessoas agitadas, se mexendo, se debatendo… É que em função da cheia dos bueiros, haviam baratas circulando, e elas estavam literalmente subindo nas pessoas. Eu, que morro de medo de insetos, fiquei apreensiva até a chegada do meu ônibus.
À caminho de casa, desabei em água. Raiva, descrença, impotência, tudo ali, bagunçado dentro de mim, me sufocando e me fazendo encarar aquele dia cheio de incontestáveis amostras desses muitos mundos que coexistem: o da filha de militar, do grupo de branks antirracistas, o meu, e tantos outros que eu nem pude acessar além da rápida e frágil observação.
Há dias normais, com acontecimentos normais, que mudam tudo. O desconforto movimenta, porque nem sempre racionalizar dá conta, é preciso dar espaço para o sentir. Eu não percebi de imediato, mas minha existência, enquanto pessoa preta e periférica, tomou outros rumos a partir da normalidade daquele 24 de novembro.